
Em janeiro de 2020 fui convidado a fotografar o II Encontro Internacional dos Povos do Campo. Esse encontro reuniu quilombolas, indígenas, povos de terreiro, ciganos e agricultores familiares na Unipampa (Universidade Federal do Pampa), em Dom Pedrito, sul do Brasil, uma cidade de 30 mil habitantes. Reunidos assim, em um acampamento dentro do campus da universidade, os participantes tinham como objetivo discutir suas demandas junto ao governo federal, trocar experiências e sementes. Foram quatro dias de plenárias com um sentido de luta sempre presente. Os povos envolvidos são eminentemente do campo e tem em comum o fato de guardarem suas identidades a partir da relação com a terra. Entendem-se na relação com territórios específicos, os quais são lugares que memória e identidade. Suas lutas são pela permanência e manutenção dos estilos tradicionais de viver. Da relação íntima com a terra, surgem as coneções entre povos indígena e agricultores, por exemplo. O conhecimento das plantas, o ritmo da vida que acontece dentro do ciclo das estações. Pessoa e ambiente não se separam na perspectiva desses povos. É por esse reconhecimento e respeito a esse modo de viver que cerca de 200 pessoas estiveram reunidas no calor extremo do verão na pampa gaúcha.

No final da tarde, antes do início das atividades da noite, um grupo se reunia para convidar a todos para um acontecimento que se chama Mística. A Mística é uma encenação organizada por um pequeno grupo de pessoas, mas que convida a que todos tomem parte. Envolve música, dança, teatro, a palavra, performance. Ela apresenta as imagens e motivações da luta em formas simples, como a frase “Eucalipto não é floresta!” para ser cantada em conjunto, e outras encenações mais complexas.

Se na forma, com suas frases entoadas em conjunto, ela se parece com outros modos de protestos coletivos, no conteúdo a Mística se apresenta muito diferente. Há um momento em que ela performa o mundo que queremos, a nossa utopia. Ademar Bogo, em seu artigo A mística: parte da vida e da luta, afirma que ela quer “expressar as razões pelas quais lutamos, criando, de forma imaginária, o mundo que queremos alcançar. É a procura de explicações e ao mesmo tempo o incentivo para viver o inexplicável.” Apresenta o problema e realiza o mundo que os presentes querem. Durante aqueles momentos todos juntos vivenciam a utopia. Ela se faz presente na roda, assim como as bandeiras que simbolizam as lutas, as sementes crioulas e as ferramentas de trabalho de cada um. No sentido contrário de uma discussão racional sobre o mundo e de uma perspectiva de estratégia para a mudança, a Mística atua sobre os sentidos dos participantes. É uma experiência estética que envolve a visão, os ouvidos, o corpo inteiro.
Arte e Vida
Toda Mística tem um caráter colaborativo. Em determinado momento do dia o grupo responsável se reúne para definir qual a melhor estratégia poética para envolver os participantes e estabelecer relações com as pautas do movimento. Nessa hora todos os camponeses se tornam artistas/autores. Cada um traz suas ideias, sejam na forma de texto, imagens, performances do corpo. Aqui não se usa a palavra arte. Os conteúdos poéticos são trabalhados sem que se faça necessário nomeá-los. É simplesmente a vida que está posta ali.
Também a autoria é difícil nomeá-la. Diante de tantas colocações, onde um sugere, outro já adapta e a Mística vai se construindo como uma colcha de retalhos. Tecida a partir de cada fragmento que cada um põe: das vivências pessoais, das causas comuns e de um tanto de influências do imaginário da televisão, de outros movimentos sociais, do teatro. Uma plagiocombinação (Tom Zé) que não busca se explicar ou justificar. Aqui o que está em jogo é tocar a vida com as ferramentas que a vida mesma lhes dá.
Durante as rodas de discussão sempre há sementes, bandeiras dos movimentos e ferramentas de trabalho no centro. Essa composição sobre o chão também é chamada Mística. Colocados ali, os elementos servem para lembrar os motivos da reunião. É uma colagem de elementos que simbolizam e são obra, mas, dentro da perspectiva desses povos, é também a presença e não só a lembrança.

Nesse sentido, os místicos propagam a plenos pulmões – realmente gritam suas palavras – o que Allan Kaprow nomeou um borramento entre arte e vida. Munidos de todas as armas poéticas de luta, “performam a vida” (Kaprow) e partilham a utopia naqueles momentos.