Ao abrir as primeiras páginas e vislumbrar o conteúdo que tecia suas memórias: cartões postais, tíquetes diversos, passagens, folhetos de hotel e toda sorte de fichamento visual que serve para recuperar alguma experiência vivida – soube que nos daríamos bem.

Cuidadosamente levei Rodolfo para o carro, acomodei-o no banco traseiro e iniciamos juntos a viagem de retorno ao Brasil, onde alguns dias depois comecei a estudar os registros deixados por meu amigo uruguaio. Pesquisei cada nota, recibo, nome, endereço, cidade, destino, mapa e tantas outras memorabílias que me são afetivamente familiares. Foi assim, aos poucos, que Rodolfo se apresentou, sempre reservando algumas dúvidas, mistérios e encantamentos.
Cruzando recibos e passagens aéreas cheguei a seu nome completo, Rodolfo Mario Castellano Maciel e o coloquei entre aspas em uma ferramenta de busca online. O único resultado remetia a um obituário da versão uruguaia do El país, jornal de grande circulação local. Rodolfo faleceu no dia 27 de janeiro daquele mesmo ano, portanto, 25 dias depois de nos encontrarmos na Tristán Narvaja. As causas de sua morte ainda me são desconhecidas, mas o referido link me forneceu mais um endereço para o mapeamento que começava a montar: Cemitério do Norte, panteão de caixa bancária, Montevideo.

Assim fui de São Paulo a Montevideo, em julho de 2012, procurar por alguém que já não mais estava lá. Por 30 dias me desloquei por um mapa traçado 3 décadas antes. Os últimos 10 dias de retorno entre Montevideo e São Paulo, se arrastaram em um ritmo lento, cheio de paradas, revisitando lugares vistos no começo da jornada e agora novamente modificados.
Parei por alguns dias no litoral uruguaio, trecho peculiar de praias vazias em que Carlos Camara me contou ser um dos preferidos de Rodolfo embora não soubesse precisar em que cidade veraneava Castellano. “Gostava de ir especialmente quando estavam bem vazias”, disse como pista difusa o suficiente para me colocar em movimento, buscando por aparições do longíquo em diversas praias.
Cada silêncio nas fotografias feitas apenas nessa viagem de retorno eram parte de uma articulação indireta, “tal qual o pintor, que pinta tanto pelo que traça quanto pelos espaços em branco que dispõe, ou pelos traços de pincel que não efetuou” (MERLEAU-PONTY, 2002:67)

Estava claro, ao menos para mim, que a base documental presente no gesto de refazer uma viagem a partir do ábum-arquivo não se enfraquecia ao incorporar silêncios, vazios e ausências, mas pelo contrário ganhava novas camadas de força e interpretação ao abraçar também o ficcional. Sem a necessidade de estabelecer status de realidade objetiva, ou de ser uma obra de não-ficção, vertente narrativa que abarca biografias, auto-biografias e estudos científicos, a ficcionalidade presente nos registros dessa viagem não existe como forma de iludir, mas como consolidação do não verificável. “Al dar un salto hacia lo inverificable, la ficción multiplica al infinito las posibilidades de tratamiento. No vuelve la espalda a una supuesta realidad objetiva: muy por el contrario, se sumerge en su turbulencia, desdeñando la actitud ingenua que consiste en pretender saber de antemano cómo esa realidad está hecha. No es una claudicación ante tal o cual ética de la verdad, sino la búsqueda de una un poco menos rudimentaria” (SAER, 1997:05). A ficção presente aqui não é, portanto, uma reivindicação do falso, mas uma abertura ao imaginário como processo complementar a memória.
No restante do retorno, ficção, drama, aura e narrativa se alternavam em locais como os hotéis em que Rodolfo havia se hospedado, (…), o trem em que Rodolfo viajou de Curitiba a Morretes. Cada um com sua particularidade, com sua forma de tornar visíveis as ausências, fazendo com que “entre o real e a imagem sempre se interponham uma série infinita de outras imagens, invisíveis, porém operantes. É essa defasagem que, pelos caminhos fluidos e subjetivos da interpretação, propõe um novo dado revestido de uma semelhança interior e espiritual com o real” (SEQUEIRA, 2010:18).
