Sucata, sudata

Notas sobre reciclar imagens como exercício de prática de resistência em tempos de obsolescência*

Nota 1.0: Lixo ou brinquedo.

Como que empilhados em uma sala de acúmulos, são muitos os exemplos de artistas que usam do lixo, do descarte, como matéria de criação poética. O casal Emília e Ilya Kabakov é um bom exemplo, especialmente em “O homem que não jogava nada fora”, onde a dupla coleciona o lixo cultural que teve algum contato humano e o arquiva, dando espaço ao que seria esquecido e rejeitado.

 

Vista da instalação “O homem que não jogava nada fora” (Emília e Ilya Kabakov)


A professora Aleida Assman traça uma relação de especularidade entre arquivo e lixo, para ela “O arquivo, um local de coleção e conservação do que foi passado, mas não pode ser perdido, pode ser considerado, de maneira inversamente especular, como um depósito de lixo no qual o passado é acumulado e abandonado à decomposição”

Já o poeta alemão Durs Grünbein descreve uma afinidade entre o arquivo e o lixo, uma aproximação de ordem temporal: ambos foram expulsos do tempo presente e existem em um tempo latente. O que caiu fora do ciclo de utilização está também excluído do presente, da mesma forma que aquelas cristalizadas pela preservação artística e, com isso, “arrancadas do fluxo das coisas”.

Para Grünbein o tempo da arte não compreende uma duração estável, mas sim “ondas de soterramento e de redescobrimento”, o rememorar e o esquecer não se excluem mutuamente nessa imagem mental da memória cultural.

É dentro desse campo temporal que penso nas imagens que recupero de HDs descartados em pilhas de discos rígidos amontoados em galpões de reciclagem: como manifestações dessas ondas de soterramento a serem redescobertas no tempo da arte, arrancadas do fluxo das coisas.

 

 

A artista norte-americana Mierle Laderman Ukeles trabalhou constantemente no aterro de lixo Fresh Kills Landfill, em Nova Iorque, EUA, como artista residente nos anos 80. Para ela o ato de jogar algo fora significa a perda do desejo de seu antigo proprietário em relação ao objeto. Segundo a artista sem o desejo, não há mais valor, cada objeto individual se torna igual a todos os outros:


Chamar algo de “lixo” significa retirar dos materiais suas características inerentes. Então, embora as diferenças sejam óbvias, o duro é como o mole, o molhado como o seco, o pesado como o leve, creme de leite mofado como sapato, […] eles se tornam as mesmas coisas. A cultura inteira conspira neste não-nomeamento. Então podemos chamar tudo mesmo de “lixo” – sem nenhum valor. Para depois, colocá-lo à distância, […] quanto mais rápido possível. Portanto esquecido.

 

A revista October, da MIT Press, dedicou sua edição de número 100, publicada na primavera de 2002, a obsolescência. Intitulada Obsolescence a edição trouxe um dossiê com a participação de artistas como Allan Sekula, William Kentridge, Richard Serra e Luiz Camnitzer.

No parágrafo conclusivo da apresentação a revista aponta para a radicalidade política da obsolescência como um fenômeno cada vez mais frequente das práticas industriais de consumo:


“Esta é uma edição especial, oferecida com a esperança e a convicção de que a condição de obsolescência pode ter um papel crítico a desempenhar neste momento histórico,particularmente se a obsolescência funcionar em relação às aspirações totalizadoras com frequência atribuídas à tecnologia de uma maneira mais radical do que o modo como o consumo tem sido posicionado em relação ao espetáculo, isto é, como um espaço de resistência”. (OCTOBER, 2002, pg. 3-5)

Conectar o excesso da obsolescência tecnológica a uma espécie de impulso arquivista (um mal de arquivo) e seus procedimentos de coleta, compilação, reordenação e catalogação, é para mim um exercício dessas práticas de resistência.

Encontrar esse material em descartes de sucata eletrônica traz em si uma conexão paradoxal entre lixo e sucata. Sucata (do árabe suqaTa) ou resíduo, segundo a legislação fiscal (Decreto Nº 18.955/1997, anexo IV), é considerada “a mercadoria que se tornar definitiva e totalmente inservível para o uso a que se destinava originariamente e que só se preste ao emprego, como matéria-prima, na fabricação de outro produto”.

instagram: @leocaobelli

* Como parte de pesquisa de doutorado em andamento no Instituto de Artes da UFRGS, publicarei nessa sessão notas, fichamentos e pequenas digressões sobre a imagem no reino da obsolescência.

Forky: brinquedos de sucata e o paradoxo sucateiro.

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Exposição virtual que integrou o 1º Desencontro e reuniu ensaios dos participantes do Grupo de Estudos em Fotografia orientado por Leo Caobelli e Vicente Carcuchinski em 2020/1.

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Rodolfo Castellano e seu álbum encotrado na Tristán Narvaja, Montevideo, em 02/01/11 é uma espécie de paradigma indiciário em minha coleção de afetos perdidos.

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