Istambul | Orhan Pamuk

Diretamente dos arquivos da web, trazemos um post sobre a Istambul de Orhan Pamuk e seu museu da Inocência.

O que é fotografia?*

“E aqui chegamos ao cerne da questão: nunca deixei Instambul, nunca deixei as casas, as ruas e os bairros da minha infância. Embora tenha vivido em áreas diferentes de tempos em tempos, cinquenta anos depois vejo-me de volta ao mesmo Edifício Pamuk onde as minhas primeiras fotografias foram tiradas e onde a minha mãe me pegou pela primeira vez no colo para mostrar-me o mundo. (…)

Ninguém imaginava as salas como um lugar onde você pudesse se instalar com conforto; elas eram pequenos museus destinados a demostrar a um visitante hipotético o quanto os donos da casa eram ocidentalizados. (…) Nunca os tendo visto ser utilizados de outra forma, eu achava que os pianos fossem apoios para a exposição de fotografias. Não havia uma única superfície na sala da minha avó que não estivesse coberta de porta-retratos de todos os tamanhos. Os mais imponentes eram dois retratos imensos pendurados acima da lareira nunca usada. Um era uma fotografia retocada da minha avó, outro a do meu avô, que morreu em 1934. pela posição das fotos na parede e pelo jeito como os meus avós tinham posado (ligeiramente virados um para o outro), da maneira ainda preferida pelos reis e rainhas da Europa nos selos do correio), qualquer pessoa que entrasse naquela sala de museu e se deparasse com seu olhar altaneiro saberia no mesmo instante que toda a história começara com eles dois. (…)

Seguindo pela biblioteca, encontramos grandes retratos da nova geração dispostos numa simetria calculada ao longo das paredes; pelo seu colorido pastel, podemos deduzir que foram obra do mesmo fotógrafo. (…)

Deixando a biblioteca e voltando à sala principal do museu, fazendo uma rápida parada ao lado dos abajures de cristal que só aumentavam a penumbra reinante, encontramos uma infinidade de fotografias preto-e-branco sem retoque que nos contam que a vida se acelera. Aqui vemos todos os filhos posando nos seus noivados, nos seus casamentos e em outras ocasiões momentosas das suas vidas. Ao lado das primeiras fotografias coloridas que meu tio mandou dos Estados Unidos podem-se ver instantâneos do restante da família fazendo refeições festivas em vários parques, na praça Taksim e às margens do Bósforo; junto a uma foto que mostra o meu irmão e eu com os nossos pais num casamento, há uma do meu avô, posando com seu carro novo ho jardim da casa velha, e outra do meu tio, posando com o seu carro novo junto à entrada do Edifício Pamuk. Além de ocasiões extraordinárias como o dia em que minha avó removeu a foto da primeira mulher do meu tio americano e a substituiu por uma foto da segunda, prevalecia sempre o antigo protocolo: depois que assumia seu lugar no museu, uma fotografia nunca era deslocada; embora eu tenha contemplado cada uma delas centenas de vezes, jamais conseguia entrar naquela sala abarrotada sem examinar de novo todas elas.

Meu estudo prolongado dessas fotografias levou-me à consciência do quanto era importante preservar certos momentos para a posteridade, e com o tempo também acabei percebendo a influência poderosa que aquelas cenas emolduradas exerciam sobre nós enquanto nos entregávamos à nossa vida cotidiana. Ao ver meu tio propor um problema de matemática ao meu irmão ao mesmo tempo em que o via numa fotografia tirada 32 anos antes; ao ver o meu pai percorrer o jornal e tentar, com um meio sorriso, captar o final de uma piada que se transmitia pela sala lotada, e exatamente no mesmo momento ver uma foto dele aos cinco anos de idade – a minha idade – com os cabelos compridos como os de uma garota, parecia-me óbvio que a minha avó emoldurara e congelara aquelas memórias para que pudéssemos entremeá-las ao presente. Quando, no tom geralmente reservado para discursos sobre o jovem, e apontava para os porta-retratos nas mesas e nas paredes, ela dava a imapressão de – como eu – ser puxada em duas direções ao mesmo tempo, querendo seguir adiante com a sua vida mas também desejosa de preservar o momento da perfeição, saboreando o rotineiro mas também honrando o ideal. Todavia, no mesmo momento em que eu ponderava sobre esses dilemas – se você colhe um momento especial da vida e o emoldura, está desafiando a morte, o declínio e a passagem do tempo ou submetendo-se a eles? -, eles me enchiam de tédio. (…) não tinha como deixar de perceber o quanto a vida era mais divertida fora dos porta-retratos. (…)

Meu tio, que por volta dessa época tinha comprado um pequeno projetor de cinema, ia nos feriados à loja local de fotografia, onde alugava filmes curta-metragem: Charles Chaplin, Walt Disney, o Gordo e o Magro. Depois de remover cerimoniosamente os retratos dos meus avós, ele projetava os filmes na parede branca acima da lareira. (…)

Eu daria muito para poder pôr a mão em algum dos quadros (hoje perdidos) que produzi em casa entre os dezesseis e os dezessete anos, representações da ‘felicidade familiar’ no que se poderia chamar o sentido tolstoiano da expressão. Esses quadros eram imensamente importantes para mim porque – como se pode ver na fotografia a seguir, tirada por um fotógrafo profissional que veio à nossa casa quando eu tinha sete anos – eu às vezes tinha dificuldade para manter a pose de ‘famila feliz’. (…)

Enquanto eu esperava que a minha mãe reparasse em mim, ficava sentado junto à sua penteadeira e remexia nos seus frascos de perfume, seus batons, seus esmaltes de unha, suas colônias, sua água de rosas e seus óleos de amêndoas; vasculhava suas gavetas e brincava com a variedade de pinças, tesouras, limas de unha, lápis de sobrancelhas, escovas, pentes e vários outros instrumentos pontiagudos; olhava para as fotos de mim mesmo e do meu irmão ainda bebês que ela enfiara por baixo do vidro do tampo da mesa. Uma me mostrava numa cadeirinha alta enquanto ela, usando aquele mesmo roupão, me dava uma colherada de papinha; nós dois exibíamos o tipo de sorriso que só se vê em anúncios, e quando eu olhava para essa foto sempre pensava que era uma pena ninguém mais poder ter ouvido como o meu grito era feliz. (…)

Quarenta anos mais tarde, a indústria cinematográfica da Turquia não existe mais; ainda exibem os filmes preto-e-branco na televisão, e quando vejo nas ruas, os antigos jardins, os panoramas do Bósforo, as mansões arruinadas e os edifícios em preto e branco, às vezes esqueço que estou assistindo a um filme, estupidificado pela melancolia; sinto-me como se assistisse ao meu próprio passado. (…)”

Orhan Pamuk em Istambul (São Paulo: Companhia das Letras, 2007).

*Publicado originalmente em: https://www.dobrasvisuais.com.br/2012/05/o-que-e-fotografia-orhan-pamuk-iii/

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