Fotografia e jardins: tempo e representação

Ensaio que reflete sobre afinidades eletivas entre a fotografia e a jardinagem, atravessando os jardins babilônicos e o mito do paraíso para alcançar imagens.

Muitas ressonâncias com a fotografia podem ser observadas em outras linguagens e práticas artísticas como a pintura, a escultura, o teatro e a arquitetura, mas muito poucas vezes elencamos, em um possível paralelo, o jardim como uma dessas práticas. Seu lugar na sociedade, apesar de ancestral, é silencioso e conectado frequentemente a mitos, segredos e mistérios. O jardim, conceitualmente, compreende muito mais do que uma linguagem, já que foram as hortas, os jardins utilitários, que possibilitaram o surgimento de cidades e de uma sociedade organizada, atribuído por muitos autores à região Mesopotâmica e seus complexos sistemas de irrigação a partir dos rios Tigre e Eufrates. (PANZINI, 2013; CRAWFORD, 1993)  

Neste princípio do fenômeno urbano já existem registros de jardins puramente ornamentais, usados como parques que, naquele momento histórico, já eram capazes de transportar seus visitantes para outras paisagens e lugares, que não aquela onde os jardins foram plantados. Um deles pertence ao historiador grego Diodoro Sículo (90 – 30 a.C.), na biografia que escreveu sobre Alexandre, o Grande, em que utiliza trechos de um outro historiador do quinto século a.C., Ctésias de Cnido, descrevendo os Jardins Suspensos da Babilônia como sendo similares, em forma e conteúdo, ao teatro. (CLAYTON, 1988) De fato, a constituição de um cenário se parece muito com a criação de um jardim, uma composição em que cada elemento contribui a uma narrativa específica, mas que dificilmente é pensada ao se observar as plantas em um canteiro. 

No palco de uma peça, a cenografia composta pelos diversos objetos, formas e elementos pode trazer grandes semelhanças à situações reais, em casos em que a estratégia se pretende a isso, mas dificilmente o espectador consegue ignorar a disposição das cadeiras e do público em relação aos atores e o cenário. Na fotografia e nos jardins, pelo contrário, é mais fácil aceitar as imagens como reais: tanto as fotos quanto os jardins se confundem com o seu entorno, borrando o limite do que representam com onde estão inseridos. Na perspectiva da pós-autonomia da arte de Douglas Crimp, a fotografia, ao ser admitida dentro do museu, rompe a estrutura vigente em que a arte dentro das instituições é vista como separada da realidade extramuros, justamente por ser capaz de apontar para um mundo fora de si mesma. (CRIMP, 1993) O jardim, assim como a imagem fotográfica, opera uma mímese de situações, lugares e experiências externas, cria uma ficção em forma de cenário, onde transparece aos transeuntes a própria natureza, em sua idealização mais pura. Toma-se como natural a condição da vegetação, aceita-se a ilusão de que um jardim traz representada a natureza assim como se aceita a fotografia como índice, com ressalvas. O jardim é, desde aí, instrumento de representação e uma forma de arte complexa, que opera partindo de imagens mentais e memórias vinculadas à cada planta, forma, cheiro e composição.

Por vezes tenho a impressão, ao observar um jardim, que ali se encontra uma janela estreita de uma realidade outra, pura de intenções, onde a humanidade e a natureza se encontram em uma harmonia perfeita. Esse encontro mágico, em forma de mito, pode ser traduzido como paraíso, objeto de desejo e glória máxima da vida. A tradição cristã do Éden, ou paraíso, é a simples noção de um lugar melhor para viver após a vida, presente também em muitas outras religiões, e que sempre carrega consigo a imagem de uma natureza abundante, ideal para representar a eternidade. As plantas verdejantes, as muitas e fartas frutas, as flores em constante desabrochar, tudo o que está transcrito na imagem da natureza no paraíso é sobre o tempo: é onde a relação com os jardins se torna radicalmente diferente. Cada entidade orgânica viva é intrinsecamente conectada ao tempo, ocasião em que nos igualamos às ervas daninhas em condição de matéria viva em um constante envelhecer, um definhamento que é observável dentro de semanas no caso de pequenas plantas, e impossível de observar no caso de árvores que já permaneceram milhares de anos vivas. 

Observando jardins, lendo imagens

 Nos escritos sobre estética de Schopenhauer, em A Metafísica do Belo, onde  traça uma hierarquia das artes, o jardim se situa logo acima da arquitetura, mas logo abaixo da pintura e escultura. A justificativa do autor seria que os jardineiros exercem menos controle sobre as plantas do que os arquitetos com madeira, metal e concreto ou que o pintor com a tinta e a tela, mas a beleza da própria natureza compensaria essa falta, sendo o maior trunfo da jardinagem. Desta forma, o domínio reduzido, inerente à arte dos jardins, é compensado pela exuberância da vegetação, trazendo à tona uma beleza dita natural e intrínseca e deixando o jardineiro em um segundo plano, apenas como condutor dessa experiência. Outro potencial ponto de encontro com a fotografia, onde são corriqueiras as discussões em torno da autoria do fotógrafo diante do automatismo da câmera, e a maior glória da imagem fotografada, assim como nos jardins, talvez não deixe de ser também a exuberância da matéria com a qual lida. O que nos jardins são o solo, as sementes, caules, folhas e flores, na fotografia é a luz, acondicionada dentro de um tempo e espaço sobre a qual reflete, que lhe conferem uma frágil materialidade, dotada de um poder ilusório inerente aos mesmos mecanismos óticos das câmaras escuras, utilizadas por tantos pintores. Atualmente, na fotografia digital, existem sensores capazes de mimetizar as cores e formas que observamos de maneira precisa, mas o que acreditar nessa precisão acarreta? Vilém Flusser em Filosofia da Caixa Preta (1ª ed. 1983), compara a crítica da pintura à da fotografia de forma a expor uma particularidade no cerne da imagem fotográfica, sua operação conceitual:

O preto e o branco são conceitos que fazem parte de uma determinada teoria da Ótica. De maneira que cenas em preto e branco não existem. Mas fotografias em preto e branco, estas sim, existem. Elas “imaginam” determinados conceitos de determinada teoria, graças à qual são produzidas automaticamente. Aqui, porém, o termo automaticamente não pode mais satisfazer o observador ingênuo do universo da fotografia. Quanto ao problema da crítica da fotografia, eis o ponto crítico: ao contrário da pintura, onde se procura decifrar ideias, o crítico de fotografia deve decifrar, além disso, conceitos. (FLUSSER, 2002)

Vilém Flusser, aqui, cria uma diferenciação singular da pintura e da fotografia: enquanto a primeira lida com uma dimensão idealista da imagem, onde o exercício da crítica se guia através das ideias do artista, a segunda se caracteriza pelo teor conceitual, produzindo uma teoria e ótica próprias do mundo por meio da imagem que opera criando, assim, uma ontologia específica do fotográfico. O autor traz a comparação entre imagem tradicional e a imagem técnica, produzida por aparelhos, e fica claro que esta última requer estratégia e engendra um pensamento crítico sobre a imagem que anteriormente não existia. Cada imagem fotográfica, por mais compositivamente simples, dá origem a um jardim de nuances que se desdobram durante sua leitura, em que podemos recortar, a partir da imagem bruta, múltiplos significados. A manipulação dos elementos, tanto na fotografia quanto no jardim, desperta o funcionamento de uma rede de referências, amarradas pela imagem mas autônomas em produção de sentido. 

O recorte, presente tanto nas composições fotográficas quanto na delimitação dos jardins, faz funcionar não só a representação de um fragmento de realidade, mas remete, assim, à totalidade do mundo, e muitas vezes o que deixa de aparecer nas imagens pode estar mais explícito do que os elementos representados com clareza. A falta de sujeito, o espaço em branco ou a lacuna podem ser fundamentais para delinear, a partir dos buracos, uma silhueta de verdade fragmentada. O historiador da arte e especialista em paisagismo John Dixon Hunt escreveu um artigo falando sobre os “entre espaços” dos jardins, que inicia com uma referência à poesia: se na poesia os silêncios deslizam em nossas mentes, entre o octeto e o sexteto de um soneto, o que acontece naquele espaço em branco define todo o resto, e o mesmo acontece com os lugares vazios em um jardim. Apesar destes espaços também fazerem parte da fotografia, seu movimento por natureza é justamente o oposto, pois é ferramenta que retira uma única perspectiva delimitada do espaço (abrindo um buraco metafórico) para representá-lo. Fundamentalmente, por isso, se diferencia da pintura, por exemplo, por majoritariamente se tratar de selecionar objetos para subtrair, com o objetivo de trazer à tona os elementos desejados, enquanto no ato de pintar, adicionam-se as formas, pinceladas e manchas que culminam em uma composição sobre a tela branca. O ato de fotografar, portanto, também é um esburacamento, um movimento insular que separa uma imagem do mundo e se conecta com a criação dos jardins nesse sentido. Nas cidades, onde se substitui historicamente a paisagem natural, intocada pelo homem, por organizações urbanas com prédios, casas e estradas, permanecem também os jardins como recortes, feridas abertas que remetem a uma natureza primeira, anterior aos processos de urbanização, uma espécie de tela sem tinta da paisagem terrestre. 

Miríades de imagens

O jardim, por ter as características indiciais já discutidas, pode ser interpretado como um enigma, um mistério que se relaciona com a própria coleção mental de imagens de cada um. As primeiras narrativas do mundo foram criadas pelos homo sapiens caçadores-coletores, quando encontravam algumas plantas pisoteadas e bagaços de frutos pelo chão e recriavam toda uma descrição do momento em que suas caças passaram por ali. Jamais dois caçadores imaginariam a história da mesma forma: a coleção de memórias e experiências envolvida em cada interpretação é íntima, pessoal. O paisagista e estudioso de jardins franceses, Yves Périllon, em 1987, organizou uma exposição intitulada Images de Jardins, em Paris, no Museu Nacional dos Monumentos Franceses, onde reuniu fotografias, pinturas, desenhos e projetos arquitetônicos de hortas, canteiros, parques e jardins, de muitos artistas e autores diferentes. No livro-catálogo da exposição, Périllon descreve: 

Em cada um de nós existe um jardim secreto feito de mil memórias, miríades de imagens reunidas durante nosso longo aprendizado da vida. (…) Este sonho vivido só existe plenamente em todo o seu esplendor através do olhar do jardineiro; sua imagem pintada, desenhada, fotografada não pode ser considerada o reflexo objetivo da realidade; em cada ato humano, e a arte da representação é uma das mais gloriosas, há um desejo de transcender a matéria: o que poderia ser mais embelezador do que um desenho de Corot feito de uma vibração de cores? O que é mais agradável do que uma visão terna do fotógrafo Robert Doisneau, um momento fugaz e feliz capturado em uma realidade ainda mais sombria? (PÉRILLON, 1987)

Ao descrever a glória da representação, o autor reforça também uma importância específica desse exercício em relação aos jardins e sua condição suscetível à morte e a entropia. A vontade de transcender a matéria acomete de maneira similar os jardins e a imagem fotográfica, e quando é fotografado um jardim, a imagem funciona em um fluxo múltiplo: traz a duração estática à representação de outra representação cuja duração depende de ação humana. De certa forma, a foto de um jardim em sua idealização perfeita é a impressão de um desejo: o mesmo presente na ideia de um paraíso e da eternidade, uma pulsão infinita de vida, se confundindo sempre com a pulsão de morte. A ideia de que a jardinagem é uma arte efêmera é facilmente tangível, mas o fato de que a temporalidade presente ali pode ser tensionada por outras ações, como no ato fotográfico, dilatando as camadas de tempo que, de outra forma, desapareceriam, desperta estranhamento. Assim como o fragmento metonimicamente remete ao todo, o momento representado em uma fotografia de jardim força uma amarração conceitual entre todos os vértices estabelecidos na relação: as plantas remetem ao macrocosmo da natureza assim como a fotografia faz perceber a realidade complexa que acomodou aquele instante, as duas linguagens se chocam. 

A particularidade que conduz este cruzamento de linguagens está justamente na colisão onde a fotografia e o jardim se anulam em suas respectivas funções de representação. O jardim, por ser uma composição de organismos vivos, obtém sucesso com a imagem fotográfica por ter a visualidade de sua forma perfeita preservada, poupando trabalho ao jardineiro, mas trai a essência de seu propósito, que é justamente a manutenção e o cuidado exigidos, cujo maior esforço envolvido é sempre o tempo. A fotografia, por sua vez, fracassa em sua ilusão pretendida como realista em criar uma representação da cena, por conta da dificuldade de se chegar em uma imagem tão plena de significado quanto a própria vegetação, com os aromas, texturas e experiências que a acompanham. Pois fica clara a relação dialética instaurada quando se cria uma imagem técnica de algo como o jardim, composição complexa em que o nível de controle sobre a matéria é quase antípoda ao da fotografia. Na imagem fotográfica, o tempo é suspenso e enxergamos a duração em paralaxe. Desmontamos, como queria Didi-Huberman, o relógio da imagem para obter nas minúcias um efeito de conhecimento impossível de outra forma. Nos jardins, plantas crescem e morrem de forma constante, cada uma em seu ritmo e sentido: ao passarmos em frente a um destes lugares, se observarmos o bastante, talvez haja um desmonte do nosso próprio relógio.

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Exposição virtual que integrou o 1º Desencontro e reuniu ensaios dos participantes do Grupo de Estudos em Fotografia orientado por Leo Caobelli e Vicente Carcuchinski em 2020/1.

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